Para leitora, Almodóvar mostra relação entre paixões e criação em ‘Dor e Glória’
O pitaco de hoje é da leitora Sílvia Marques, 41, psicanalista, atriz e escritora. Sílvia escreve sobre “Dor e Glória”, filme de Pedro Almodóvar que está em cartaz nos cinemas. Para saber onde assistir em São Paulo, clique aqui.
Na trama, um cineasta em crise reflete sobre as escolhas que fez ao longo da vida quando lembranças do passado aparecem em sua memória ou no dia a dia. O filme levou o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes. Confira a resenha:
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Pedro Almodóvar se tornou conhecido e reconhecido internacionalmente por seu estilo hiperbólico e catártico, em que as cores explodem juntamente com as emoções, uma mescla de kitsch com os ícones da cultura espanhola. Em “Matador” (1986), causou polêmica ao colocar um ex-toureador como um assassino de mulheres. Comparou a alcova com a arena, erotizando um importante ícone da sua cultura.
Em “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988), obra que o lançou na fama internacional, a personagem protagonista vivida por Carmem Maura enche uma jarra de gaspacho, bebida típica espanhola, com calmantes. O vermelho da bebida se confunde com a própria passionalidade de Pepa e da cultura espanhola.
Em “A Flor do Meu Segredo” (1995), a paella, que deveria coroar um momento romântico entre a instável escritora Leo com seu marido, simboliza o fiasco da relação amorosa.
Após “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro, Almodóvar entrou numa fase menos catártica, com filmes sensíveis, porém, com uma linguagem menos passional. Em “A Pele que Habito” (2011), recuperou boa dose da sua passionalidade, porém em tons pastéis e com uma aura macabra. “A Pele que Habito” parece uma releitura sinistra de “Ata-me!” (1990), um filme obsessivo, mas colorido e sexy.
“Dor e Glória” (2019) é uma espécie de fechamento da obra do cineasta, em que ele faz um balanço da sua vida pessoal e do seu processo criativo. Com elementos biográficos, estabelece um meio termo entre um primeiro Almodóvar gritante e intenso com um segundo mais politicamente correto.
“Dor e Glória” possui um estilo sóbrio, porém, nos remete ao primeiro Almodóvar ao escolher Antonio Banderas para viver o cineasta que faz um balanço da própria vida. A dor do título apresenta dois sentidos. De forma mais direta se refere às dores físicas experienciadas pelo protagonista. Num sentido mais subjetivo e metafórico, nos faz pensar na própria dor de existir, de criar, de deixar amores para trás, de decepcionar quem mais amamos.
A mãe do cineasta é vivida na juventude por Penélope Cruz e na velhice por Julieta Serrano, que já atuou como mãe de Banderas em outros dois filmes: “Matador” e “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”. No primeiro, interpretou uma mulher cruel. No segundo, uma desequilibrada emocionalmente.
Quando Almodóvar desnuda a aridez da relação entre mãe e filho, parece haver uma questão metalinguística, pois não é a primeira vez que vemos Julieta Serrano tiranizando Banderas em cena. Ela o culpa por ele ser quem é, de forma mais amena que a sua personagem em “Matador”.
Outra questão metalinguística importante é revelar no final da trama que Penélope Cruz não interpreta a mãe do cineasta na juventude. Ela interpreta uma atriz que faz o papel da mãe de Salvador. Falando em metalinguagem, Salvador é a versão espanhola de Salvatore, nome do protagonista do filme ítalo-francês “Cinema Paradiso” (1988).
“Dor e Glória”, além de colocar em dia as memórias de Almodóvar, parece fazer também uma homenagem à sétima arte, provavelmente o mais duradouro amor do cineasta. Na cena em que Salvador desmaia na infância, ao sentir desejo sexual pela primeira vez durante um dia quente e cheio de luz, encontramos todo o vigor de Almodóvar para revelar como as paixões viscerais são o motor de qualquer processo criativo –e por que não salvador?
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