Em releitura de Shakespeare no teatro, ator vira trovador, sambista e funkeiro, conta leitor

O pitaco de hoje é do leitor Marcos Lacerda. Marcos é sociólogo e frequenta teatros na cidade de São Paulo. Ele escreve sobre a peça “A Paixão de Brutus”, releitura da montagem “Júlio César”, de William Shakespeare (1564-1616), que está em cartaz no Pequeno Ato.

Nela, o ator Pedro Sá Moraes narra, com um violão em mãos, as intrigas que permeiam a trama de Shakespeare. Para isso, usa composições que vão do cordel ao funk, ao mesmo tempo em que faz 15 personagens e um narrador. Veja, abaixo, a resenha do leitor.

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Está em cartaz no teatro Pequeno Ato, em São Paulo, sob a direção de Norberto Presta, um monólogo a respeito da peça “Júlio César”, de Shakespeare: “A Paixão de Brutus”. Trata-se de uma livre interpretação feita pelo músico, compositor e crítico Pedro Sá Moraes. Pedro faz parte do coletivo Chama, grupo que reúne alguns dos mais interessantes artistas da canção contemporânea carioca.

O Coletivo tem ampla atuação em festivais e mostras de canção, publicação de livros e uma variedade de álbuns autorais e coletivos (infelizmente ainda pouco conhecidos na capital paulista). Ao lado de nomes como Thiago Amud, Thiago Thiago de Mello e Renato Frazão, Pedro tem feito proezas de inteligência crítica, apuro formal e delicadeza poético-musical muito acima da média.

O monólogo envolve teatro e canção. Há um cuidado com a questão da forma no uso da voz, da palavra e da canção. Ora como texto teatral e conversa cotidiana, ora como ruído formal e canção popular, as falas dos protagonistas são ditas pelo ator com variações de gestos, modos de expressão e movimentações do corpo.

Pedro Sá Moraes também se transmuta. Como cantor de samba (“Hoje é Segunda-Feira”); como mediador complexo entre o rap e o funk (“rap do Caska”); como trovador medieval a cantar “canções de amigo” em versos de um lirismo tocante e pungente (“Serei sua matriz/sua consorte leal/ou qualquer meretriz/pra seu alívio carnal”); como bardo a entoar palavras/labaredas (“nos negros céus trovejantes/nos raios incandescentes”); com fogo intempestivo e delirante (“não há ameaça mais séria/do que a grandeza ilusória/e os apetites em fúria”); como líder revolucionário (“o homem precisa morrer/se um homem tem todo poder, todo o resto é cativo”); como soldado impreciso, imperador impávido, sátiro libertino (“a carne é branca/o aço afunda/do ventre até o coração) e ingênuo (“queria ser o poeta do povo/que canta o que sente/na língua e no dente/do mel e do travo/ que escorre da gente”).

Em determinado momento não ouvimos palavras, mas ruídos de conversas. A voz antes de se tornar sentida como palavra inteligível, mas que ainda não é canção. Em suma, a voz como ruído formal. No momento seguinte, já temos a palavra como texto teatral, com os diálogos entre os protagonistas, os tipos sociais da peça, cuja variação política se estende a imperadores, servos, trabalhadores braçais, deslizando em ambiências não menos variadas: as ruas, as praças, os palacetes, a intimidade de um casal.

Por fim, num terceiro momento, a voz como ruído e as palavras como texto se transformam em voz e palavra como canção, que se modula de modo complexo e encantador em diferentes gêneros e subgêneros da canção popular. Eles são acompanhados de violão, batuques improvisados e gravações eletrônicas da própria voz.

Momento alto do espetáculo, o conjunto de canções que atravessa o monólogo mostra um compositor muito vigoroso e inovador –capaz de escrever versos de alta voltagem poética (“as ideias navegam rio acima/rio abaixo o destino e o desencanto/são cascatas indômitas de pranto/que uma vez desatadas nunca param”), ao lado de descrições do cotidiano conduzidas por melodias que se apoiam ora na invenção formal, ora no apuro técnico e doce da tradição de canções do Brasil.

Palavra antes da palavra, como voz e ruído; palavra como texto teatral; palavra como canção movendo personagens variadas, numa peça clássica e atemporal, por meio de um compositor brasileiro moderno de canção popular.

No final, o doce bardo, o trovador de gestos calculados e intempestivos, sugere uma conversa com o público. Ele se coloca ao debate e estende a voz como ruído, a palavra como texto e a voz e o ruído como canções para a palavra como crítica e pensamento, dando o desfecho ideal para o que se tinha visto no palco.

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A Paixão de Brutus. Pequeno Ato. Rua Doutor Teodoro Baima, 78, República, São Paulo, SP. Sáb. e dom.: 20h. Até 1º/9. Ingressos: R$ 40  p/ eventbrite.com.