Álbuns de Pitty e Madonna lançam luz em momento de trevas, afirma leitor

O pitaco de hoje é do leitor Lucas Prado Mattos, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Lucas tem 31 anos, é engenheiro mecânico e gosta bastante de música. Para o Pitaco, ele faz uma comparação entre os álbuns mais recentes de Pitty (“Matriz”) e Madonna (“Madame X”).

“Acompanho o trabalho das duas com especial atenção, porque gosto muito. Inclusive, parte da inspiração para escrever o texto foi estar empolgado com o show da Pitty aqui em Porto Alegre, no próximo dia 5, e com a estreia da turnê da Madonna em Nova York na última semana”, conta Lucas. Leia, abaixo, a resenha.

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Quem olha mais atentamente sabe da convergência entre as carreiras de Pitty e Madonna. A própria Pitty já se declarou fã da Madonna e fez um programa inteiro como cover da cantora americana na finada MTV.

Enquanto Pitty tem o rock na veia… bem, a Madonna também o tem. Mais rock’n’roll que estar há décadas desafiando o conservadorismo e o status quo? Isso é muito mais transgressor do que muitas bandas roqueiras que apareceram nesse tempo orgulhosas de suas guitarras e torcendo o nariz para as batidas pop da Madonna.

Dizem que ouvir o novo álbum de um artista que se acompanha há muito tempo é uma experiência parecida, em séculos anteriores, com a de receber uma carta de um amigo que não se vê há tempos. Primeiro, ficamos a par do que tem acontecido na vida da pessoa.

Pitty lançou “Matriz” no final de abril de 2019, e Madonna lançou seu “Madame X” pouco mais de um mês depois. Ao ouvir os novos álbuns, percebe-se que as ideias que passam pela cabeça delas são as mesmas que passam pela cabeça de quem tem um mínimo de sensibilidade: tentar respirar no meio da onda ultraconservadora que varre o mundo ocidental nos últimos anos.

Assim, com letras corajosas, as duas cantoras fizeram neste ano o álbum mais político de suas respectivas carreiras. A palavra “democracia” aparece em “God Control” da Madonna, faixa sobre o controle e posse de armas de fogo; “revolução” e “resistência” aparecem em “Noite Inteira”, faixa mais pop já produzida pela Pitty que chegou às rádios em remix (que faria bonito na discoteca do polêmico clipe de “God Control”).

Madonna escreveu “I Rise” para tocar nas paradas de orgulho LGBT pelo mundo, buscando inspiração para a letra em Jean Paul Sartre e sampleando parte do discurso de Emma González, sobrevivente de um massacre em escola americana.

O sol do Caribe também brilha nos dois álbuns. A levada reggae faz a cama para “Future” (que Madonna gravou com o rapper Quavo), para “Te Conecta”, da Pitty, e para “Sol Quadrado”. Nessa última, Pitty reflete sobre os limites da liberdade na sociedade atual, reflexões que ecoam em “Extreme Occident”.

Em um momento que o Brasil abraça ideias xenófobas contra o Nordeste, Pitty veste as cores da Bahia, seu estado natal, na capa do álbum e em vídeo promocional, e chama o Baiana System para expressar o orgulho de suas origens nordestinas em “Roda”: “você pode até latir, você pode até bradar / você pode coibir que eu não vou me abalar / só não mexa no meu jeito de dançar”.

No refrão de “Killers Who Are Partying”, Madonna adverte em português: “o mundo é selvagem / o caminho é solitário”, e nas estrofes oferece sua voz a grupos marginalizados quando esses sofrerem ataques (entre outros, ela será pobre se os pobres forem humilhados, ela será gay se os gays forem queimados –imagem que filma literalmente no clipe de “Dark Ballet”, quando coloca Joana D’arc sendo interpretada por Mikki Blanco, artista negro, queer e HIV positivo, que aparece sendo queimado pela igreja católica).

“Madame X” nasceu enquanto Madonna acompanhava o filho, jogador de futebol em Lisboa. Isso fez com que tivesse contato com a cultura portuguesa, bem como com influências de outros países que compartilham nossa língua, como o próprio Brasil (percebo traços do “Transa”, do baiano Caetano, além da poderosa presença da “Anitta” no CD), e também Cabo Verde, na África. Influência escancarada em “Batuka”, gravado com mulheres do grupo Batukadeiras.

Bahia, o estado brasileiro mais africano, ecoa em todo álbum de Pitty, com ritmos de percussão africana, mas vem para a linha de frente em “Redimir”, faixa produzida por Pupilo. Inclusive, nessa faixa Pitty faz o que Madonna é genial professora: subverter símbolos católicos em metáforas mundanas. “O chicote em minhas mãos / o chicote em minhas costas / rasgando rios, o vergalhão / via-crucis autoimposta”, Pitty canta em Redimir.

Minhas preferidas da Madonna são chamar seus fluidos vaginais de água benta em “Holy Water”, cantar “Live to Tell” em uma cruz e, é claro, o clássico clipe da seminal música “Like a Prayer”, sobre se ajoelhar para rezar, ou para fazer sexo oral.

Existem congruências nos álbuns, sejam elas temáticas ou sonoras. Isso provavelmente se dá por vivermos em um mundo globalizado em que as grandes questões que afligem Pitty são as mesmas que afligem Madonna –ou por ambas terem uma atenta antena para a música que está sendo feita em todo o mundo.

Mas penso que a mais importante é a impermanência, ou a permanente insatisfação. As duas cantoras lançaram álbuns que são únicos dentro de suas respectivas discografias. Madonna não aponta seu barco para uma aposentadoria, ou para regravar sua excepcional coleção de sucessos em formato acústico ou algo que o valha. Pelo contrário, ela sai de sua mansão em Lisboa para tocar um dos maiores vespeiros do mundo, ao mostrar a bandeira da Palestina em polêmica apresentação no Eurovision.

Pitty tampouco recorre a melodias e letras fáceis que lhe garantiriam sucesso radiofônico mais imediato. Ambas gravam álbuns que tentam lançar luz em momento que as trevas ganham força. Vida longa e produtiva a elas.

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Pitty. Pepsi on Stage – Av. Severo Dullius, 1.995, Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Sáb. (5/10): 22h. Ingressos: a patir de R$ 45, em bileto.sympla.com.br.