‘Coringa’ é soco no estômago e faz refletir sobre catatonia da sociedade, diz leitora
O pitaco de hoje é da leitora Sônia Rampim, que mora em Brasília, no Distrito Federal. Sônia é socióloga, educadora e técnica do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Ela atua na área de educação e participação social nas políticas públicas de patrimônio cultural.
Escreve, para o Pitaco Cultural, sobre o filme “Coringa”, que está em cartaz nos cinemas e foi avaliado com cinco estrelas (ótimo) pela crítica especializada da Folha. O longa, que causou polêmica antes mesmo de estrear por conta das cenas violentas, destrincha a história do vilão do universo de Batman. Confira, abaixo, o texto.
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“Coringa” (2019), dirigindo por Todd Phillips com brilhante atuação de Joaquin Phoenix, estreou no dia três de outubro e é daqueles filmes que geram conversas no trabalho, debates nas mesas de bar, acaloradas discussões e insônias. Permite interpretações livres sobre o que é real nas cenas e o que é parte dos delírios da mente vulcânica de Arthur Fleck, sobre a gênese desse personagem e sobre seu engajamento em causas sociais, mesmo que involuntário. Traz o prazer de entendimentos espontâneos, comuns nas chamadas obras de arte abertas.
A construção psicológica do personagem é ressignificada para além do maniqueísmo presente nas sagas de super-herois tradicionais. Um dos méritos do filme é a preservação da memória coletiva sobre a narrativa do Batman. Os elementos da composição e construção da história estão lá, mas a releitura da complexa formação da personalidade de Arthur inova ao colocar variáveis sociais como componentes que servem de liga para a consolidação de um Coringa que se transforma aos olhos dos espectadores.
Arthur Fleck foi socializado na Gotham City caótica que parece representar os tempos e espaços contemporâneos, com dez mil toneladas de lixo espalhadas pelas ruas e vidas dos cidadãos. A cidade fictícia revela um Estado ausente que reforça a invisibilidades dos excluídos que projetam suas carências e indiferenças em vazios transformados em terrenos férteis para o inconsciente coletivo clamar por uma salvação mágica, vinda de um anti-herói, sofredor e silenciado, que acredita que as pessoas estão loucas e não se afetam com a dor alheia.
As contradições presentes entre os limites do ser herói ou ser vilão levam o público a se identificar com a saga de Arthur, que se torna um símbolo dos oprimidos por uma elite predatória. Em outras palavras, a identificação se processa no campo do demasiadamente humano. A universalidade arquetípica da vivência nos limites confusos entre o que é ser “bom” e o que é ser “mau” invadem o espectador quando este se coloca na pele e nas dores do Coringa.
A máxima de George Orwell, presente na “Revolução dos bichos” – de que alguns cidadãos são mais iguais que outros – permeia o cenário político da narrativa e nutre Thomas Wayne, progenitor de Bruce Wayne, o Batman de uma Gotham City que se assemelha à fazenda dos bichos, onde os porcos desfrutam dos privilégios do poder de uma sociedade falida e excludente. Somado a esse contexto, o drama pessoal de Arthur integra a composição de sua personalidade que luta em todos os segundos de sua vida miserável na expectativa de realizar o desejo de visibilidade, de palco, de aplausos e risos, de atenção, de empatia, de afetos, de reconhecimento e, sobretudo, de escuta.
Arthur possui uma “risada não compatível com o sentimento”, frase escrita no cartão do serviço social que traz consigo para explicar e evitar possíveis constrangimentos no convívio social obrigatório. E qual será seu sentimento? O que passa por sua cabeça? O que o palhaço triste quer da vida? O público anseia responder a essas questões quando reconhece intimamente a risada do personagem como se fosse sua, expressão de uma angústia que, no caso dele, se manifesta como um distúrbio mental que se agrava em situações de tensão.
Para além de representar a possibilidade de identificação com cenários sociais muito presentes na realidade desses tempos difíceis, o filme é um soco no estômago. Faz refletir sobre esse estado catatônico em que parte da sociedade contemporânea se encontra diante das barbaridades e estupidez que atingem o direito à vida, à diversidade cultural, aos diferentes jeitos de se estar no mundo. Faz pensar, também, sobre os significados da violência contemporânea como resultado de processos sociais e coletivos e que se entranha no cotidiano, às vezes, como solução para distopias emergentes.
Se a arte e os artistas têm o poder de antecipar quase que profeticamente o que está por vir, parece que questões estão postas. A risada estridente, desesperadora e catártica do Coringa, de alguma forma simboliza o estado de espírito que se instala nos que se opõem a esses desmandos autoritários e predatórios. Revela as dores do silenciamento e da invisibilidade de vidas que lutam pela existência.
“Nem eu mesmo sabia se eu realmente existia”, disse o protagonista à responsável pelo serviço social falido que o desligara do atendimento contínuo. No final do filme, esse pronunciamento tem o papel fundamental de coroar o roteiro com um dilema profundo: o que é, afinal, a existência humana? Essa tomada de consciência, vinda de um anti-herói, faz ressoar uma outra questão crucial para o entendimento desses tempos assustadores: será que o mundo está gestando um desejo de Coringas?
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