Distintos e complementares, ‘Bacurau’ e ‘Parasita’ refletem sobre resistência, diz leitor
O pitaco de hoje é de João Estevam Lima de Almeida, 49, pernambucano que reside em São Paulo há oito anos. João é arqueólogo, historiador e escreve poemas, contos e crônicas. Além disso, “curte muito cinema”, como ele mesmo diz.
Para o Pitaco Cultural, faz uma resenha comparando os longas “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho, e “Parasita”, de Bong Joon-Ho. Aclamados, “Bacurau” levou o prêmio do júri no Festival de Cannes de 2019, enquanto “Parasita” foi vencedor da Palma de Ouro em Cannes.
Confira.
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Seria possível comparar “Bacurau” e “Parasita”, dois filmes tão distintos? Quase não me atrevo a tecer reflexões sobre cinema, no entanto as perspectivas de um e de outro me fazem tentar criar paralelos. Não me aterei às suas sinopses; deixo ao leitor desta crônica que ainda não os assistiu (ou se ateve aos seus enredos) fazê-lo.
Sim, é possível tecer vários paralelos entre o filme de Kleber Mendonça Filho e o de Bong Joon-Ho. Atenho-me à perspectiva do lugar do outro. Em tupi, o nome Bacurau pode ser assim descrito: mbaé (bicho) e curau (que volta à cabeça). Biologicamente, parasita diz-se de um organismo que vive em outro organismo, dele obtendo alimento e não raro causando-lhe dano. Estão aí as metáforas centrais de um e outro para criar reflexões sobre a resistência.
Se em “Bacurau” o pássaro vai se mostrando aos poucos, demonstrando que a alteridade não quer se submeter a uma ordem estereotipada que não concebe ver o outro, em “Parasita” a invisibilidade vai se descortinando paulatinamente para chegar ao ápice.
Sim, os filmes podem à primeira vista parecer diametralmente opostos, mas firmam o lugar da resistência, onde há tensão e agrilhoamento por trás de um sistema capitalista perverso, perverso em todas as suas sutilezas e agressões, e a colocar à margem aqueles que não estão no centro do que se chama aquisição, consumo.
Vou pelo viés do espaço e do lugar para tentar traçar um paralelo entre um pássaro que se camufla para sobreviver e outro organismo que se torna invisível ao máximo para estar no lugar que poderia ser seu de direito. Em “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho usa aspectos bem delimitados e a linguagem cinematográfica hollywoodiana para construir seu espaço de alteridade.
Bacurau, além de ser um pássaro, é uma cidade –cidade esta que simplesmente é apagada do mapa. Ela não existe e as pessoas que ali habitam não têm alma, porque não estão alinhadas ao sistema daqueles que concebem o mundo de forma unívoca e pobremente ocidental (no seu aspecto mais superficial, sem horizonte).
Aqui, Kleber Mendonça Filho estabelece o lugar do outro e o mostra por meio da lente daquele que não consegue ver o diferente; os elementos vão se descortinando e Bacurau, como um pássaro que antes se camuflava na caatinga, agora se mostra exuberante, atento e vigilante ao inimigo. A resistência é explícita, porque Bacurau existe, tanto como lugar, quanto como identidade.
Em “Parasita” se vê a justaposição de dois espaços em uma ótica oriental. O espaço do pobre, que para muitos não é harmônico, não é “clean”. É caótico e desproporcional se comparado com formas modernas, retas e bem delineadas de uma casa de um casal de classe média-alta em algum país oriental. O espaço da pobreza é tangencialmente sem estrutura; demarca o que é desigual, coloca o outro no limite entre viver e sobreviver.
A riqueza é proporcional e bela; a pobreza é feia, caótica e desproporcional. Aqui, o espaço, o lugar do outro, é paulatinamente habitado, ocupado e utilizado por aqueles que não deveriam ali estar.
Se em “Bacurau” há a invasão de um espaço ocupado por um invasor, que não concebe outro lugar e outro modo de vida que não aquele que circunscreve o seu mundo, levando a alteridade a lutar por aquilo que lhe pertence por direito –o direito de existir e de estar neste mundo–, em “Parasita” há a estranheza de se estar naquele organismo, que deveria ser de todos, mas pertence apenas a uma classe. Assim, o organismo que passa a viver daquele outro organismo precisa, em um primeiro momento, tornar-se invisível ou parecer-se ao máximo com aqueles que não são de sua classe.
Em “Bacurau”, o filtro é aumentar a lente ao máximo, como em um telescópio que consegue aproximar uma imagem com uma distância de milhões de estrelas. E ao aumentar a imagem, mostrar o outro que resiste, mesmo que ao invasor pareça aberrante, antinômico.
“Parasita” nos mostra que o pequeno organismo que se infiltra, adentra, se instala e passa a sugar daquele organismo que é estranho, mas que não precisaria ser, leva à sua própria estranheza, à sua própria alteridade.
Resistir se constitui perceber-se estranho e pertencente a este espaço, usufruí-lo. Kleber Mendonça Filho opta pela visibilidade do espaço da alteridade, do outro, que em um mundo distópico não consegue enxergar o outro. Bong Joon-Ho nos mostra que o caminho de uma invisibilidade não é mais possível, na tensão ambivalente que o cheiro pode provocar.
O pobre ao rico cheira mal e o coloca preso ao seu lugar. A fronteira é invisível, mas ela ali está, e demarca a barreira quase intransponível a separar dois mundos que não tentem ultrapassá-la. O cheiro da estratificação social torna-se uma bomba-relógio, que em determinado momento explode e lança seus estilhaços para todos os lados. Ninguém sairá ileso…
Sim, “Bacurau” e “Parasita” são filmes distintos e complementares. Metáforas antinômicas que confrontam a mesma distopia. No primeiro, a resistência é explícita, visual: o outro quer ocupar o lugar que querem tomar, erradicar, apagar, mas ele teima em se mostrar, não mais se camuflar, demarcar seu espaço. No segundo, a resistência é implícita, inescapável, quase invisível, sinestésica –e o outro ali está, mesmo que o não queiram senti-lo.
No lado ocidental a antinomia se mostra, no lado oriental o cheiro irrompe. Bacurau existe e o parasita vive!
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Veja onde assistir a “Bacurau” em São Paulo aqui. E “Parasita”, aqui.
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